segunda-feira, 17 de setembro de 2007

REDACÇÃO

Sete da manhã, está fresco, está frequinho, céu enevoado, sento-me para fazer palavras, umas
palavrinhas, fazer – que não é o mesmo que dizer, porque quando a gente diz palavras, quando a
gente fala, as palavras saem da boca, podemos quase vê-las, espreitá-las, como quando os padeiros
tiram pães do forno – fazer então palavras, umas tantas palavrinhas, como as batatas que arranquei
ontem à tarde, e depois fui espreitar um passaroco aquático cujo nome (palavra) desconheço, do
tamanho duma galinhola mas não preto, asas entre o castanho e o cinzento acomodadas sobre o
peito, e tronco (?) branco. Bico não muito longo, espalmadito, avermelhado, terminando numa
forma de unha amarela como os bagos de milho.
Fazer palavras não é nada difícil. A gente senta-se em frente da máquina de as fazer, tem as
letrinhas todas à disposição: o i, o p, o h – todas – e vamos carregando naquelas que escolhemos, e
elas vão surgindo à velocidade com que mexemos os dedos (ainda ontem ouvia o nosso conterrâneo
António Rosado a executar no piano uma magnífica Rapsódia in Blue, de Gurshwim (?) e o homem
faz verdadeiros malabarismos com os dedos, troca as mãos, arranca notas de teclas que até parece
não existem, os dedos parecem muito mais dos que os apenas dez que deve ter, e agitados como um
punhadinho de minhocas que se tirem da lata para escolher uma e iscar o anzol de pesca) – quase
assim se fazem as palavras, juntando letras, aquelas que queremos, sejam elas para escrever
formiga, que se entende, e vê, e até se pode apanhar pelas patinhas, ou grimofa, com as mesmas
letras mas que não sabemos o que significa, nem interessa muito, porque foram as palavras que nos
deram superioridade sobre os nossos ascendentes, que eram, até, mais fortes do que nós mas não
usavam as palavras, não sabiam falar, não sabiam escrever (fazer palavras) , não sabiam cantar, não
sabiam praguejar, não sabiam ofender. A princípio era o verbo. Não sei bem o que quer dizer, mas
acho que há-de ser isso: libertámo-nos pelas Palavras.
Já oito e qualquer coisa da manhã, o mesmo nevoeiro ainda – chato, peganhento, prenúncio do
outono em que já entramos, o outono das peras tardias e do vinho, das fermentações e da chegada
dos patos, e de queimar os primeiros paus de lenha na lareira.
Há povos inteirinhos cheios de fome. Vamos esgotando a Terra – consumindo o gás e o petróleo,
conspurcando as águas, exaurindo (tem piada, conheço um Exaurindo. Ou será Isaurindo?) os solos
de onde retiramos aquilo que comemos.
Antes das palavras já havia deuses. Só que não tinham nome. E as coisas parece que pioram à
medida que vamos podendo nomeá-los. Há guerras entre adeptos de uns e outros. E os próprios
apoiantes de um determinado deus também se digladiam entre si. E em tudo há deuses: na política,
no futebol, na fórmula 1 (mas também na 2, na 3, na Ford, na BMW...), nos negócios, no salto em
altura, no triatlo, na ópera, no fado...
A máquina de fazer palavras não se cansa. As letrinhas todas muito arrumadinhas – á espera de um
toque digital que as transforme em palavras. Bem como os pianos não se cansam. Nem as harpas.
Nem os motores dos automóveis. Ou, quando se cansam, reparam-se, reafinam-se. Há afinadores de
pianos – afinar pianos não requer mais acuidade auditiva do que afinar carburadores.
Afinar as máquinas de fazer palavras é que é um pouco mais complicado. Se eu soubesse quem
afina a máquina do Herberto Hélder,, ou afinava a do Fernando!
Ponto de exclamação. Ou de interrogação! Não são palavras: são sentimentos. Podiam ganhar essa
designação genérica: Pontos de sentimentos (onde se incluiriam ainda os pontos de indefinição, de
dúvida, de espanto, de tristeza, de amor...) já pensaram nisso?
Quase nove horas. Já ceifam o milho frente à casa. O milho amarelinho, da cor da ponta do bico do
passaroco aquático cujo nome desconheço.
A manhã continua fria, o rádio debita música de Verdi, vou deixar as palavras em sossego

4 comentários:

Dragoazul disse...

Ora viva! vim aqui por curiosidade e por via indirecta! o endereço do blog junto à crónica semanal do DS está desactualizado - é o blog "velho". A não ser que a ideia seja essa mesmo - passar pelo "velho" para depois chegar ao novo, se se quiser. Cumprimentos e a promessa de aparecer por aqui mais amiúde.

André Espenica

platero disse...

ok, amigo Andr�

gosto em ver amigo por aqui.

grande abraço

Necasamar disse...

Não vim aqui por acaso. Um amigo falou-me no blog . Gostei do que li, penso vir mais vezes .

Necasamar disse...

Exacto, quero ir mais atrás. Tenho tempo para tudo até ler coisas boas