sábado, 4 de agosto de 2007

D D (o Dia Depois)

Exactamente: as coisas resultaram, o homem libertou-se de metade do anátema lançado sobre si,
punindo o esquecimento de renovar a carta aos 65 anos.
E porquê de metade?:- porque ainda lhe falta fazer a prova prática, de condução, que na prática já
vinha exercendo há perto de meio século- sem acidentes dignos de registo.
Mas o Dia D foi mesmo complicado. Já na véspera tinha passado pelo susto de não saber onde tinha
guardado a licença de aprendizagem, isto não é da idade, não é patologia cerebral ou cognitiva, será
qualquer desarranjo genético, inato, que o acompanha desde que tem memória de si mesmo.
Lembra-se, por exemplo, de que no lugarejo onde nasceu – no meio dos 10 ou 12 miúdos da sua
geração era de longe o mais desleixadito. A mãe nunca o deixava sair de casa sem uma inspecção
prévia ao vestuário.
Os outros putos, na sua maioria, cuidavam minimamente o visual. Desde os que se penteavam
cuidadosamente ao espelho, aos que eram capazes de rejeitar uns sapatitos porque os atacadores
estavam esgarçados.
Na tropa – logo nas primeiras horas do primeiro dia de sequestro, o homem viu-se confrontado com
um "enxoval" completo que era necessário acomodar numa caixa de madeira cinzenta, com a altura
precisa do desvão da cama. Escassos 2 ou 3 centímetros de folga do chão à parte inferior do colchão
de arame.
Dois ou três pares de calças grossas, difíceis de dobrar; meia-dúzia de pares de meias brancas
tecidas num fio espesso de algodão; cuecas não sei quantas, de pano, de cor entre o branco e o ocre
- um café com leite deslavado; camisas, praticamente da cor das calças, com bolsos
despropositadamente grandes; bivaques; botas; cinto; um interminável capote: que ao jeito do
homem arrumar a sua roupa era bastante para encher a caixa.
Tudo em lotes, em montes, espalhados pela caserna. Uma espécie de buffet de "atavios", de que o
recruta se servia a seu bel-prazer.
O homem nunca soube escolher. Trate-se da cor das meias ou das idiossincrasias dos amigos.
Aceita a roupa como um resfriado no inverno ou o sucesso ocasional na prova escrita de um exame.
Não prova as calças antes de comprá-las e pagá-las, não cuida de saber se as riscas verdes e
amarelas da camisa não vão brigar com a cor bronzeada de berbere da sua pele.
O homem lembra-se de um fim-de-dia em Lourenço- Marques, a caminho de Esplanada habitual, se
sentir invulgarmente olhado pelos transeuntes. Vestia um casaco branco – estilo colonial – com os
botões abotoados fora da casa respectiva. O que lhe conferia uma torsão do tronco – em que era
difícil alguém não reparar.
Retomando então o fio da estória: o homem ficou à beirinha de chumbar na prova escrita do exame
de condução. Podia, no máximo, errar a colocação de 3 cruzinhas. Sem tirar nem pôr foi as que
errou. Inefável sorte para si. Também podia agora armar em forte e dizer que escolheu errar
exactamente três. Pontaria maluca esta!
O esforço de memória que o país exige a estes pobres candidatos. As Universidades tinham aqui, à
porta dos exames, uma boa fonte de recrutamento de matéria-prima: jovens Caixas de
Supermercado ou vendedoras de cosméticos fora das horas de trabalho; praticantes amadores de
judo , capoeira e outras artes marciais; distribuidores de publicidade porta-a-a-porta – tudo gente
que sabe de memória a velocidade máxima permitida a um veículo pesado de mercadorias, com
reboque, num via destinada à circulação de automóveis e motociclos.
O homem sabe que, aos 68 anos – porque se esqueceu do acto meramente burocrático de revalidar a sua carta de condução – obrigarem-no a procurar na memória uma "caixa cinzenta" onde guardar
todos os atavios teóricos que a rapaziada jovem consegue mais ou menos dobrar e arrumar, o
homem sabe que é sujeito a uma inominável prova de Sadismo.
Senhores legisladores, pelo menos a partir dos 60 anos cuidem de fazer chegar às pessoas
legitimamente habilitadas a conduzir um aviso atempado de que a validade desse documento tem
um prazo de revalidação. Quantos milhares – a nível do país? Uma bagatela, senhores legisladores.
E evitam a monstruosidade de exigir a um avôzinho saber quando um estacionamento é PROIBIDO
ou ABUSIVO. Que eu (espero não anulem o aprovado do meu glorioso dia D) ainda agora estou
longe de Saber. Juro!
E vocês? Sabem?
Abraço especial aos senhores Deputados da Assembleia da Rébública – aos que adreguem ler-me e
acreditem que defender os interesses dos idosos nunca deixará de ser uma causa justa.
Ah, e repetir uma oferta que já fiz no início desta campanha tormentosa: a sério – juro. Se o
ministério que tutela esta matéria não for dotado das verbas necessárias à execução deste programa,
eu-próprio, António Saias, morador de Monte isolado em Igrejinha, cuidarei de vo-lo fazer chegar,
sem custos nem demora: Uma porcaria de um programa informático que lembre os cidadãos idosos,
encartados, de que devem renovar a sua carta no prazo, por exemplo, de 3 meses. Querem mais?
Boas Férias, temperaturas tépidas para amolecimento desses espíritos.

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