quinta-feira, 23 de agosto de 2007

REQUIEM PELO ÚLTIMO FAUNO DA IGREJINHA

Mesmo assim tiveste sorte: era próximo das sete, o calor não apertava por aí- além, tinhas meia
Igrejinha a dizer-te o último adeus.
Como não acharias piada a esta vulgaridade comezinha, pequeno-burguesa, judaico-cristã, grotesca:
dizer-te o último adeus! Gente frouxa, não é?
O Sol, já reclinado, batia nas parras das parreiras do ti João das Bombas, olha, a última granizada e
este estúpido fim de Agosto dão-lhe um porradão na produção de tinto deste ano.
Gostarias de saber que tinhas raparigas bonitas mesmo atrás de ti. Ó Gil, nem elas te esqueceram! E
a Aldeia quase em peso, o presidente da Junta e a mulher, tanta gente, Gil, nem podes mesmo
imaginar!
Se fosse eu – e eu hei-de ser um dia – faria um trovoadão maluco, como este último que arrasou os
campos e as colheitas, seria à hora da transmissão televisiva dum Benfica Sporting ou coisa
parecida, um torneio de malha, um campeonato de sueca – e lá iria sózinho, como se diz e tu
também não gostarias, até à última morada.
Escrevi uma vez, a propósito já nem sei de quem – mas julgo que se adapta perfeitamente a ti,
amigo Gil, acompanhado à sua Primeira Morada. Será mesmo? Onde acabamos de te acompanhar -
tua primeira e única morada? Conheci-te a morares no Pomarinho. Um Monte em escombros, a cair
aos bocados, será que pagavas renda? Olha, não sei nem quero saber.
Escrevo a ouvir neste momento uma música maluca de Strauss. Richard Strauss. Nem te passa pela
cabeça como seria bonita para te acompanhar. E com um nome sugestivo: Fanfarra para um
Homem Comum. As pessoas de letras que lêem esta estória bem podiam dar-se ao trabalho de
procurar um CD com essa tal fanfarra. Para terem a certeza de que não estou a inventar.
Já tinha escrito sobre ti. Não sei mais onde é que isso pára. Como me esqueci de renovar a carta, e
tive agora que palmilhar a pé quase metade do caminho entre o Monte e a Igrejinha para te
acompanhar.
Mas é giro, sabes, que a Aldeia guarda na memória algumas das passagens mais significativas do
passado escrito? A estória dos bonés, que usavas a teu bel-prazer, contra a obrigatoriedade de
Scollari – teria sido em época de exacerbação futebolística nacional – de Scollari, dizia, ter que se
exibir perante as câmaras de televisão Sagres, Coca-Cola, PT ou TMN, ou coisa parecida, porque
isso lhe rendia alguns milhares de contos. A tua ingénua liberdade, Gil, de usares o que te dava na
cabeça. E se me lembro também de te ver exuberante: à escocesa, à inglesa, sei eu lá, com um
casaco rosa-velho, camisa escura com bordados genuínos – flores lilases – boa calça preta, vincada
como se saída de mãos de namorada, Gil, um autêntico modêlo.
A inseparável caninha – isso é que destoava de maneira notória do conjunto.Tens que concordar!
Do nosso último contacto esportulaste-me pelo menos 5 euros. Não se faz. Eu fazia um trabalho
académico para a Universidade – uma tese de mestrado, que é assim uma coisa muito séria, tão
contrária à tua, e ao cabo minha, maneiras de estar na vida, tinha que fazer-te uma entrevista, sei
que adiaste, por isso, uma partida de bisca,
Gil, lambias indecorosamente as cartas, de maneira até lasciva, diria. Ninguém ligava mas olha que
era um nojo. E um perigo para a Saúde Pública. Cheguei a escrever para o Ministério da Saúde,
sugerindo que o hábito nacional de lamber as cartas contribuía seguramente para a propagação desse
tal pseudococus não sei quantos – o agente infeccioso da tuberculose. Bem feita porque ninguém me
respondeu. Mas foi por tua causa, Gil, única e exclusivamente pela maneira ostensiva como
passavas o polegar pelo meio da língua de cada vez que sacavas uma carta do baralho.
E a privação dessa partida custou-me, não esqueço, Gil, a módica quantia de 5 euros. Parecendo que
não era um conto de réis em moeda antiga.
Estás na minha tese de mestrado. No tal livrinho de que te falei ainda há pouco. Em frente à garagem do Traguedo, com o teu casaco de flanela e a boina protectora, a velha cana – tão habitual
em ti como um cigarro a arder.
LEGENDA:
TANISSA (o GIL) – indiferenciado típico
pode fazer dezenas de quilómetros a pé por um molho de cardos ou de espargos, por meia-dúzia
de vassouras ou vasculhos, por uma especialidade cinegética fora de época, no regaço do defeso.
Não disse às claras que eras um inveterado caçador furtivo. Um exímio armador de ratoeiras e
armadilhas. Nem essas coisas podem ser escancaradas assim nos trabalhos ditos académicos, nem as
autoridades policiais podem estar lá muito pelos ajustes. Entendes?
Vai demasiado longa a minha narrativa. Para publicarem isto no Jornal – não pode exceder um
determinado número de caracteres. Quer dizer: de palavras . Como sabes, no sacana deste Mundo é
tudo feito por medida. Tudo obedece a leis, a normas, a regras, a preceitos – não te disse já que
estou de novo a fazer exame de condução porque me esqueci de renovar a carta? Sei que não sabias,
Gil, a tua transferência para o Hospital de Mora vai para dois meses....
Onde nós, anarcas, como tu e eu, ganhamos a toda esta gente burocrática, formal, metódica,
organizada – como a vida exige, dizem, sabes no que é? Nas coisa pequeninas. Tu muito mais do
que eu, que tinhas que estar desperto para a Natureza. Acredito que sentisses, na cama, entre o
sussurro da chuva miudinha, o rumor do rebentar dos torões dos espargos – bem longe, por esses
campos fora. Exagero?
Para teu conforto – sei que só eu reparei nisso – enquanto o padre encomendava a tua alma ao
criador, amigo GIL, um pintassilgo serôdio cantarolava de entre a ramagem do mais próximo
cipreste.
Adeus Tanissa (GIL) – um indiferenciado típico

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