terça-feira, 19 de junho de 2007

MORREU O FRANCIS

(Não sei se com esta prosa vou ganhando alguns amigos. Sei é que já perdi quase todos os que
tinha)
Francis era um cão. De Silvestre – lembra-se? O cão de Silvestre. Parecidíssimo com ele: guedelha
longa; raça indefinida; malcuidado; ladrava só para cumprimentar.
Uma semana de agonia, assistido in-extremis por veterinário amigo, mesmo assim não resistiu.
Acompanhava-me ao correio para recolher diariamente o jornal, e pouco mais, aventurava-se no
asfalto, e aí brigávamos: não sabes que esses gajos dos automóveis são malucos?... venha já
práqui-ralhava.
Seguia-me pela estrada, nesta mau transe de ter que deslocar-me duas vezes por dia a Arraiolos,para
assistir às aulas de condução (bem feita -para não seres esquecido!) e regressava a corta-mato –
depois de muita peroração sobre os perigos do asfalto.
Tinha-me sido dado pela Manuela há três? há quatro anos?, admito até que já estaria entrado na
idade. E depois era assim: Não foi vacinado uma só vez. Nem desparasitado, nem sujeito a nenhum
desses cuidados básicos que os donos de animais jamais descuram. O Francis era como eu. Como
Silvestre, se quiserem.
Com os gatos acontece a mesma coisa. Ração e água, com uma festinha pelo pêlo quando adregam
estar por perto.
Nascem, crescem, multiplicam-se aos caprichos das luas e do tempo, sem intervenções de vulto pela
parte que me toca. Um, da última ninhada, viajou agora no motor do jipe de uma amiga, na distância
de uma boa dezena de quilómetros.
A morte do Francis levou-me a algumas reflexões: é justo que eu adopte os animais – para depois
os tratar tão descuidadamente? Com a Christhie- você lembra-se – foi diferente: amputação da
pata, cerca de 200 euros de despesa, algumas deslocações à Mitra.
Não serei eu assim em tudo? Com os filhos, os amigos, a família...? Acaso sei quando fazem anos?
Acaso telefono – para além do trivial “estás bom? Como vão as coisas por aí?”
O cidadão-comum tem uma agenda. Com uma infinidade de contactos, de registos, de informações.
A Telma e o Ricardo fazem agora anos de casados. A tia Catarina foi operada à hérnia há quinze
dias. O pai do motorista caiu da escada que dá para o sótão – não esquecer telefonar. Mandar
flores à Professora de violoncelo do miúdo. Tem sido encantadora pro rapaz....
O que se passa com os meus amigos, para além da incúria com que trato os bicharocos, torna-se
mais grave porque tenho o vício de me expor publicamente através destes gatafunhos que vou
espalhando por aí. E os meus (poucos) amigos interpretam, por vezes, estou convencido disso, mal
aquilo que escrevo. Ou os amigos desses meus amigos os massacram com leituras enviesadas
e fora de contexto:
Vê que até vos comparou aos gatos e aos cães, são vocês amigos deste gajo?
Vou mesmo ter que reflectir sobre esta indisfarçável anomia social. Sob pena de não ter, um dia
destes, alguém a quem dirigir uma palavra.
A não ser! Há sempre um “a não ser”! - que resolva copiar a atitude daquela linda senhora de
Arraiolos, talvez dos seus setenta anos, que há dois dias me dizia:
estou a cumprimentá-lo. Talvez o senhor não me conheça. Mas eu vejo-o por aqui, somos da
mesma Terra, por que razão não havemos de falar?
De qualquer modo, é necessário, é urgente que reflicta. Porque a falha há-de ser seguramente minha.
Abraços para todos. Sim, mesmo para si. Quem sabe um dia não lhe digo: estou a cumprimentálo....
António Saias

2 comentários:

casimiro disse...

Há sempre alguém que resiste! Meu amigo, comparar-me com cães e gatos é uma honra! Bichos domésticos que dão muito mais do que pedem... Francis, que não conheci a não ser das suas prosas, foi feliz porque teve um dono, teve um MUNDO. Um abraço, sempre!

JR disse...

E vão dois!
O Francis, Francisco ao bom sabor portuga, ou o Silvestre de que ouvi falar agora era um regalo. Cada vez que se lhe dirigia a palavra, ria. Que humano faz isso para nós que lhe não chamemos de tolo.
Tive pena do Francisco.
Um abraço,